Já faz tempo que vivemos num mundo em que a modernidade caminha soberanamente com os próprios pés. Alguns até alegam a possibilidade de vivermos numa pós-modernidade, num período em que já não resta mais nada ‘fora’ do enquadramento moderno 1; a romântica província, o campo idílico, as regiões remotas intocadas pela marcha da modernização foram definitivamente incorporadas no último ciclo de globalização dos anos 1990 em diante, de modo que a dualidade entre o arcaico e moderno só existe residualmente, mesmo na dita ‘periferia global’. Prova disso está na figura quase arqueológica do aristocrata, cuja aparição é encenada pela cultura de massas dos filmes e séries históricas. Cada vez mais a aristocracia é vista com a admiração contemplativa de um turista que visita o museu - a existência , o poder, a grandiloquência nobiliárquica de outrora são reduzidas a artefatos culturais para o entretenimento de uma massa que, para o aristocrata, seria o triste resultado de uma sociedade amorfa e culturalmente degradada. A modernidade triunfa sobre os seus opositores e ostenta os espólios da batalha numa galeria colorida de imagens para o consumo.
I
Mas apesar dessa percepção de uma aristocracia há muito sepultada, ela tinha um poder bastante real até o começo do século XX. Uma leitura histórica apressada poderia sugerir uma inexorável e acelerada decadência através do século XIX, época em que os efeitos da revolução industrial e francesa ecoavam pela Europa ocidental. No entanto, como argumenta Arno Mayer no clássico “The persistence of the Old Regime”, a aristocracia entrava no século XX ainda firme na conservação dos costumes, da tradição e do poder herdado. Seja na economia, política ou cultura, a classe nobre exercia influência determinante; ela tinha um lugar cativo nas estruturas do Estado, do exército e da propriedade, e nada podia ser aprovado ou implementado sem o aval dela. A economia, especialmente dos países da Europa central e leste, dependia da terra, cuja propriedade concentrava-se nas mão da senhoriagem. A política, ainda em larga medida impermeável à democracia de massas, era organizada em câmaras superiores nas quais a composição era fruto do conchavo entre famílias, uma extensão dos assuntos familiares na esfera pública. Nas instâncias superiores, como nos ‘ministérios da guerra’ e de ‘assuntos externos’, caberia por direito e dever ao ilustre nobre assumir o controle 2. Por fim, a cultura ‘oficial’ era um assunto eminentemente aristocrático, conduzido nos salões, teatros e castelos, indissociável da áurea sobre a qual Walter Benjamin iria refletir décadas mais tarde 3.
Até a primeira guerra mundial era o mundo dos impérios que se pensavam eternos e inabaláveis. Apesar de todo o progresso técnico e das mudanças sociais em curso, não se podia dizer que a aristocracia era um anacronismo, já que as relações de poder entre ela e o Estado continuavam intactas e os seus hábitos preservados . Embora as ferrovias rasgassem o território, o navio a vapor encurtasse a distância entre os continentes, as massas operarias crescessem nas cidades etc., a nobreza permanecia com suas carruagens a desfilarem por cidades e províncias repletas de monumentos que simbolizavam a perenidade dos valores tradicionais. O zunido das fábricas e o burburinho das massas coexistiam com os veneráveis gestos e ostentações de fidalguia. Essa dissonância social, característica da clivagem entre o moderno e o arcaico, ressoava pelo continente europeu numa crescente que, segundo Mayer, provocaria tensões cumulativas, levando ao cataclismo da guerra mundial deflagrada em 1914:
The Great war was an expression of the decline and fall of the old order fighting to prolong its life rather than of the explosive rise of industrial capitalism bent on imposing its primacy.
Doravante, sobrariam apenas ruínas daquilo que um dia se imaginou acima do tempo e da matéria.
II
Seria possível reconstruir fielmente o modo de vida aristocrático após uma ruptura tão violenta e destruidora provocada pela sucessivas guerras e revoluções que marcariam o ‘breve século XX’? Na melhor das hipóteses, o que podemos recriar são reminiscências baseadas nos fragmentos lúdicos, textuais, historiográficos e artísticos dispersos na literatura. O esforço para combiná-los e assim se aproximar da experiência da cultura de uma classe extinta é ilusório, porém proveitoso no sentido de esclarecer o abismo que nos separa daquele mundo - a própria desilusão com aquele esforço é sinal desse abismo.
A estrutura do romance pode, entretanto, propiciar a reconstituição mental de pelo menos parte do que foi perdido. Ela situa a experiência histórica num processo investigativo no qual é possível enxergar um fio condutor que parte dos detalhes ínfimos do cotidiano até uma cosmovisão a partir da qual a totalidade, aparentemente desconjuntada, assume uma ordem apreensível e distinguível. Até a descrição do mais reles gestual contém em si, no contexto do romance, uma pista que elucida o entrelaçamento entre cultura e experiência concreta, união esta que atribui significado à vida social. No caso específico da aristocracia, o romance clássico do século XIX orbita ao redor das questões envolvendo uma nobreza aflita pela turbulência causada por uma modernidade ascendente 4. Tendo essas questões como ponto de partida, a fim de chegar ao âmago dessa aflição, o romancista se vê obrigado a fazer da prosa um tipo de ‘sonda’ que perscruta os ‘interstícios’ de um corpo social ainda saudável e em plena forma, no entanto incerto sobre a sua própria longevidade. Nessa sondagem temos a oportunidade de respirar um pouco a atmosfera do tempo histórico não-vivido.
Mas, nas primeiras décadas do século XX, a aflição é tragicamente confirmada e o corpo, antes vigoroso, definha ao ponto de virar um cadáver. O prosador se transforma num legista, portanto. Uma das obras que melhor ilustra essa mudança é o romance “O Leopardo’, de Giuseppe Di Lampedusa. Escrito durante o pós-II guerra mundial, o romance se passa nos anos 1860, numa remota Sicília de uma Itália que está em vias de se unificar e constituir o seu Estado-nação moderno. O sentido narrativo é a decadência da família Salina, cujo patriarca, Don Fabrizio, é o protagonista que, com uma melancolia contemplativa, reflete sobre a inelutável desagregação do poder aristocrático. Trata-se de um drama pessimista desprovido da veemência da catástrofe; o patriarca não é degolado em meio à fúria revolucionária, o seu patrimônio não é expropriado e a riqueza permanece intacta. O que se perde nessa decadência é, todavia, algo de muito mais essencial: o centro do poder, da cultura e da existência, que se desloca do domínio senhorial para a estrutura anônima e supra-humana do Estado e do dinheiro. Giusseppe Di Lampedusa, ele mesmo oriundo de uma família nobre, quando escreveu o romance nos anos 1950 provavelmente olhou para o então já longínquo século XIX em busca das primeiras manifestações desse fim, sinais ainda pouco claros porque justamente não traziam em si a irrupção violenta das guerras ciclópicas do século XX.
Os primeiros ‘estertores’, digamos assim, aparecem na ficção de “O Leopardo” em tons sóbrios, carregados de uma serena resignação com o destino implacável. Ante a perspectiva da modernização política na Italía, reunificada ao redor de um Estado nacional, Don Fabrizio não oferece oposição significativa, pois entende a inutilidade de qualquer reação. Em vez de lutar contra o ‘movimento da história’, deve-se pactuar com ele; essa é a única possibilidade para prolongar a vida aristocrática e evitar a antecipação do seu fim. No começo do romance, o revolucionário pró-unificação Tancredi, sobrinho de Don Fabrizio, sintetiza essa rendição nos seguintes termos: “Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”. ‘Mudar para conservar’ é a dialética de uma classe ameaçada que procura se agarrar na primeira boia que lhe jogam - sem entender muito bem quais serão as implicações ulteriores disso para a sua sobrevivência no longo prazo. Mas Don Fabrizio Salina as compreende muito bem, na medida em que ele vislumbra nesse acordo com ‘ a história’ o presságio apocalíptico do seu mundo:
Era inútil tentar convencer-se do contrário, o último Salina era ele, o gigante desaparecido que agora agonizava na sacada de um hotel. Pois o significado de uma linhagem nobre consiste inteiramente nas tradições, nas recordações vitais; e ele era o último a possuir recordações incomuns, distintas das de outras famílias.
Há, portanto, uma conotação faustiana nesse pacto que se estabelece entre a aristocracia e a emergente burguesia e o Estado moderno. Em O Leopardo, Don Fabrizio não só aquiesce com a perda de poder decorrente da unificação, como também permite que um dos seus sobrinhos se case com a filha de uma obtusa família de comerciantes, colocando fim a tradição de perpetuar a integridade da estirpe através das gerações. Nesse acordo, os Salinas conservam o patrimônio e a autoridade, embora de maneira relativa e circunscrita porque condicionadas ao poder centralizador do Estado e à natureza abstrata do dinheiro. Eis o começo do fim.
III
Um outro romance histórico, escrito no entre guerras, enverada pela mesma melancolia do esvanecimento de um universo que parecia tão sólido, tão perpétuo; “The Transilvânia Trilogy’’, de Miklós Bánffy. Nos três volumes dessa saga, o palco da história é a Hungria pertencente ao então império austro-húngaro, mais especificamente na região da Transilvânia, paisagem semi-feudal onde duques, condes e condessas desfilavam orgulhosamente pelas festividades senhoriais. À exemplo de Lampedusa, Miklós Bánffy também era um fidalgo que foi testemunha da ordem nobiliárquica quando, no final do século XIX, ela ainda preservava um certo prestígio e poder social, sobretudo num contexto provinciano em que o ruído dos trens e da máquina chegava apenas tenuamente aos ouvidos dos senhores de terra.
O enredo se desenvolve ao redor de dois jovens primos, Balint e Laszlo, cujas divergentes trajetórias e personalidades exprimem as contradições latentes sob a fachada lustrosa da nobreza húngara. Balint, filho de uma importante família aristocrática, regressando à casa após se formar em diplomacia na capital, toma a decisão de assumir a responsabilidade de cuidar da terra, da mãe viúva e dos servos, profundamente convencido de um senso de compromisso com o seu lugar no mundo e o dever legado pela tradição. Ele seria o expoente mais bem acabado do arquétipo patriarcal de valores morais imaculáveis, generoso porém firme, dedicado à tarefa de manter um ordenamento hierárquico no qual a fidelidade e a obediência dos súditos são recompensadas pela segurança material e espiritual garantida pelo nobre. Contudo, na trama, essa fé quanto a um dever senhorial justo e honroso é testada reiteradamente pela corrosão moral dos princípios ante o assédio de indivíduos cobiçosos para os quais o compromisso com a comunidade, a honra e o dever é secundário, senão um entrave ao enriquecimento pessoal. Balint precisa lidar com a deslealdade de administradores e subordinados, a sordidez de agiotas que exploram e arruínam o campesinato, a promiscuidade obscena entre autoridades, clero e instituições financeiras etc. Como manter os laços que tecem a ordem senhorial diante da ascensão de uma sociedade moderna em que o referido ‘laço’ se torna uma corda com a qual se puxa para si em detrimento de todo o resto?
O segundo núcleo do romance é a vida do primo Laszlo, jovem órfão de pai e mãe, a principio alegre, festivo e cheio de vida, mas depois depressivo e decadente, atravessado pela angústia. Isso porque Laszlo, devido ao vício pela jogatina das apostas, destrói as suas chances de se casar com Klara, mulher de sua vida. Mas o fracasso amoroso é apenas a causa imediata da espiral autodestrutiva de Laszlo. Em contraste com o primo Balint, ele expressava, num primeiro momento, uma indiferença quanto a incumbência patriarcal, pois o que lhe motivava a paixão era os salões, bailes e, sobretudo, a música. A vida para Laszlo não era administrar posses e camponeses, mas se definia pela ebriedade das melodias e a vertigem da dança; somada a isso, a intimidade das rodinhas de carteado e a adrenalina da aposta dominariam os seus desejos e impulsos. Essa paixão por viver na plenitude, embriagado de música, álcool e apostas, entraria em conflito com a missão de formar o vínculo pelo qual a sua classe se reproduz e transmite os valores pela eternidade: o do casamento, a vida estável numa rotina de afazeres e obrigações que caracterizam a existência do patriarca.
Na trajetória de Laszlo, o desamparo começa na orfandade e termina tragicamente na morte solitária, na indigência do fidalgo despossuído de terra, família e honra. Se no drama de Balint a ameaça à velha ordem provém de agentes externos, burgueses e arrivistas inescrupulosos, na de seu primo o vetor destrutivo é interno e nasce do pressentimento desesperado de que, talvez, não haja muito futuro pela frente, restando aproveitar sofregamente o espetáculo e o esplendor de um mundo cujo fim se aproxima - é esse mau augúrio, como numa profecia autorrealizável, que dilapida a riqueza, o patrimônio e as relações pessoais na explosão extática da música e do jogo, como no comportamento delirantemente alegre da elite feudal às véspera da peste bubônica, narrado por Giovanni Boccacio; nesse cenário, faz sentido casar e ingressar na maioridade patriarcal?
Laszlo, no momento em que visita a casa de uma ilustre condessa, deixa transparecer em sua reflexão toda aquela angústia provocada pela presença ominosa da morte e do fim:
And yet, thought Laszlo, behind all this lay the uncertainty of real life; bleak, cold, cruel, unrelenting and evil. In front was every pleasure that man could invent: food to be savoured with knowledge, wine to drive one to ecstasy, beauty, colour, light and the rosy temptation of woman's fesh to make one forget everything, especially the merciless advance of death which lurked in the shadows behind them.
Mas seria esse esforço em ornamentar a vida com os prazeres, a beleza e o requinte apenas uma reação historicamente condicionada de uma classe condenada? Mais do que isso, como argumenta Johan Huizinga em “O Outono da Idade média”, essa volúpia em ‘embelezar a vida’ é um dos traços fundamentais da cultura aristocrática, desde tempos que antecedem à modernidade. Ameaçada pela virulência da peste e pelas intermitentes guerras que perfizeram a transição da idade média para a modernidade, a nobreza procurara dissimular a calamidade social e a brutalidade existente com toda uma miríade estética de adornos, ritos, cerimônias e costumes que dignificaram a arquitetura, a pintura, a música, as roupas, os gestos etc., da aristocracia. De crise em crise a nobreza foi sobrevivendo dentro desse involucro ornamentado no qual se dava a efusão de orgias e prazeres até chegar no derradeiro golpe desferido pela modernização, cuja iminência Laszlo e Don Fabrizio percebera de diferentes formas. Em Don Fabrizio, esse pressentimento acarreta melancolia, enquanto em Laszlo culmina em um empedernido niilismo, o qual é expresso por ele num diálogo em que Balint, numa resposta enfática, tenta defender o significado de ser um nobre:
Why not? What do I owe to this rotten society here?’ Balint jumped up angrily, the veins swelling on his forehead. ‘What would you be anywhere else? Nobody! Your name would mean nothing: you’d just be a number on a passport. How dare you waste your inheritance, dissipate everything that is yours by birth! You never made your own fortune. It's not yours to throw away. You have a duty here, a duty to the community that raised you and gave you all these advantages!
E de que serve a admoestação do primo Balint? Laszlo não a ouve, não a leva sério, pois acredita piamente no fenecimento do mundo aristocrático, o qual, segundo ele, deixava de ser uma ordem natural, baseada na providência divina, pra se tornar uma sociedade moralmente falida e injusta. Num dos episódios Laszlo se depara com o infortúnio de uma serviçal que, grávi da pelo mordomo, é dispensada e jogada cruelmente na sarjeta, sem lugar pra aonde ir. Aqui ele desperta para o sofrimento do ‘povo comum’, um problema que raramente perturbava o isolamento de uma classe concentrada consigo mesmo:
Until now he had had no idea of the practical horrors that faced ordinary people. His own world had been an artificial one where the pains and sorrows and loneliness, however harrowing, had been cerebral and emotional.
O isolamento da nobreza dentro da sua terra, da sua comunidade e das questões paroquiais é rompida também em várias outras instâncias, entre elas, a do casamento e da política. Para Adrienne, uma esposa infeliz por quem o solteiro Balint é perdidamente apaixonado, a instituição do casamento é uma fraude que oprime o indivíduo, reprimindo a liberdade absoluta de agir de acordo com a própria discrição. “Dever” e “tradição” tornam-se valores opacos pertos da individualidade livre de qualquer vínculo que possa restringir sua ação.
Marriage, said Adrienne, was an old-fashioned and meaningless institution. Nobody had the right to limit the freedom of another individual. All women as well as men should be free to act as they chose, as much with their bodies as with their thoughts. This was the only undisputed right that was accorded to mankind. Free will must be paramount.
Quanto à política, o narrador em variadas ocasiões descreve a indiferença com que a sociedade senhorial reagia aos assuntos que extrapolassem a estreiteza das questões provincianas. Mesmo as crescentes tensões geopolíticas que antecederam 1914 não foram suficientes para quebrar esse encerramento no mais restrito cotidiano político. Entretanto, já no clímax do pré-guerra, logo em seguida ao assassinato do arquiduque Franz Ferdinand em Sarajevo, os ‘fatos mundiais’ irrompem maciçamente. De maneira súbita, eletrizadas pela perspectiva da guerra, multidões inundam as ruas, desfraldam bandeiras, gritam em uníssono etc., e estremecem uma realidade até pouco tempo atrás submersa no marasmo. Indivíduo e massas, antípodas modernos que se interpenetram, juntos destroem irreparavelmente a velha ordem patriarcal.
IV
Tanto "O Leopardo" quanto os três volumes de "Transylvanian Trilogy" são obras que devotam páginas e páginas à descrição da estética. A ênfase nas minúcias é o meio dos autores demonstrarem o quão belo e sólido parecia aquele modo de vida. Em O Leopardo um jovem casal vagueia pelo casarão da família Salina e explora as diferentes suítes, salas e compartimentos, descobrindo nestes tesouros perdidos, pinturas medievais, joias, insígnias etc., cuja forma, textura, cor e simbolismos são narrados vivamente, malgrado o viés nostálgico e ressentido do narrador que olha em retrospectivo. Cada um daqueles objetos remetia para uma lembrança e suscitava uma reflexão sobre o passado, uma consciência da continuidade que unia séculos e gerações. Já no romance húngaro, o que se destaca é a importância dos bailes e festas para a vida social. Nada escapa ao escrutínio da narrativa: dos utensílios ao vestuário, até mesmo a iluminação e os detalhes arquitetônicos, tudo é descrito pormenorizadamente para avivar a imagem cerimonial. Desta descrição cuidadosa, ao mesmo tempo panorâmica e detalhista, emerge a impressão de uma realidade regida pelo ‘primado da beleza’. A experiência precisava ser enriquecida com toda solenidade e magnificência possível, a fim de inculcar na cabeça de todos a ideia de uma ordem onde o refinamento dos detalhes, tomadas em conjunto, conduz a uma totalidade harmoniosa e bela.
E sobre as mãos e braços que constroem, organizam e mantêm toda essa deslumbrante manifestação de pompa e sofisticação? Em ambos os romances muito pouco se fala sobre a tortuosa e nada solene labuta de serviçais e camponeses. Estes nasceram para servir e contam com a proteção do senhor; seus papéis já estão prefigurados na ordenação pré-estabelecida pelo transcendente. A invisibilidade do trabalho, a divisão estanque e intransponível entre o ócio dos nobres e o trabalho dos servos, é o pressuposto da ‘vida bela’. A revolução francesa, contudo, abrira a caixa de pandora da ‘igualdade universal’, deixando sair daquela os espíritos zombeteiros do universalismo que iriam desarranjar as relações hierárquicas ao trazer á tona a desigualdade radicada naquela predestinação que agraciava uns com a bem aventurança e condenava outros à penúria do labor . Na virada do século XIX para o século XX, os movimentos políticos proclamariam a emancipação por meio do sufrágio universal, dos sindicatos e partidos para cercearem os privilégios nobiliárquicos. O serviçal que segura a bandeja dos drinks haveria de ter os mesmos direitos que um fidalgo - ao menos formalmente. Apesar disso, nenhum desses antagonismos é abordado pelos romances; eles esclarecem não somente pelo que revelam, mas também pelo que ocultam.
Por essa razão, o centro narrativo está no interior da classe aristocrática. Discute-se os seus dramas, conflitos internos, crenças etc., enquanto os demais atores sociais assumem um papel coadjuvante. O que melhor ilustra esse ‘protagonismo arraigado’ é a cultura dos duelos. Na ocorrência de um ‘desagravo’ entre dois gentlemans, a resolução deve ser, como diz a tradição, conduzida pela espada, supervisionada por um júri seleto e mediada por um ritual em que as regras são estabelecidas e juramentos proferidos em voz alta diante o testemunho dos senhores. A defesa da honra e da dignidade não era uma tarefa a ser realizada segundo os protocolos burocráticos e impessoais da justiça moderna, mas levada a cabo diretamente pelas mãos das próprias partes implicadas. A perícia com a espada e a força eram, por conseguinte, o fiel da balança numa época na qual a concepção de ‘justiça’ ainda tinha alguns resquícios do ideal romântico heroico. Na obra “Transylvanian trillogy” os duelos são narrados com uma riqueza de detalhes que atesta a importância renitente de um costume medieval cercado pela difusão das formas modernas do direito e d pensamento racional. Empunhar a espada para defender a própria honra era uma forma de protesto contra a degradação aviltante do nobre em um individuo juridicamente tutelado por técnicos da máquina estatal.
Mas no decorrer do romance, mais precisamente no fim, a cultura do duelo perde a raison d'être aos olhos da elite esclarecida. Miklós Bánffy relata no livro a visita do conde d’Eu à Hungria, com o propósito de promover uma iniciativa contra a ‘relíquia bárbara’ dos duelos:
To round up support he (i.e Conde D’EU) travelled all over Europe, stopping in every provincial capital where he thought a branch should be founded (…)it is a disgraceful thing that in this enlightened age men still go in for duelling. The duel is pure barbarism, is it not? Apart from being frightfully stupid!
Fundamental para legitimar os duelos era a crença segundo a qual a mão divina interveria na luta em benefício do justo contra o malfeitor. Mas no mundo racionalizado e cientifizado do século XX quem poderia garantir isso? Se Deus estivesse vivo, ele seria um Deus relojoeiro que apenas executa o mecanismo e o deixa funcionar por si mesmo, observando-o distantemente. A natureza desmitificada e transformada em matéria manipulável pelo ‘progresso’ sinalizava que a relação entre o humano e o transcendente havia entrado em um declínio tão irreversível quanto o processo de modernização. Sem a áurea divina pairando sobre o duelo, este perderia a seriedade e se transmutaria numa performance anacrônica, exercida mais por uma obrigação formal do que por uma convicção profunda e sincera sobre seu valor intrínseco.
A campanha contra os duelos liderada por Conde D’Eu transcorre a poucos anos antes de 1914. Sabe-se que a escala mecanizada da primeira guerra mundial iria depurar de vez a guerra dos elementos cavalheirescos remanescentes. A infantaria montada, tão imponente ao logo da história, se desmoraliza com o advento dos veículos motorizados, especialmente o tanque de guerra. Assim, a portentosa e bela figura do cavaleiro se dissolve na massa cinzenta e anônima dos soldados , os quais, esvaziados de qualquer veleidade heroica, ficam entrincheirados à espera das ordens de um aparato de guerra autonomizado, cuja razão industrial os disciplina para uma ‘tempestade de aço’ sob a qual irão se despedaçar física e espiritualmente 5.
V
Décadas antes da eclosão da guerra já era possível refletir sobre a ‘decadência dos valores’. O fin-de-siecle incorpora o pessimismo com o progresso de uma civilização materialmente pujante, mas espiritualmente decadente. O fin-de-siecle é também contemporâneo da Belle Époque, esta designando a prosperidade, a paz internacional e a afirmação cosmopolita do comércio mundial, da técnica e da cultura burguesa. Nas capitais da Europa ocidental, de Londres a Viena, pulsavam as correntes intelectuais, políticas e artísticas de diferentes origens, muitas das quais antagônicas entre si, reunidas num espaço onde o convívio entre elas se dava numa concertação que ampliava a democratização e o caráter plural da nascente sociedade de massas 6. Diante do otimismo liberal progressista da Belle Èpoque, uma parte recalcitrante da aristocracia, encastelado em seu feudo, pensava sombriamente acerca das consequências desse desenvolvimento que, para uns, significavam o florescimento civilizacional, para outros, a queda no mais vil embrutecimento ético, espiritual, cultural, estético etc dos homens.
Na autobiografia O mundo de Ontem de Stefan Zweig, o capítulo inaugural discorre sobre a normalidade dos anos pré-guerra, um período cuja definição , segundo Zweig, encontra na palavra “Estabilidade” sua expressão mais bem acabada. Nesses tempos havia a estabilidade econômica, que assegurava a ordem dos preços e a certeza de que a riqueza estaria não apenas garantida, como também valorizada ao longo do tempo; havia estabilidade nas relações internacionais, malgrado as tensões entre os blocos europeus; havia, sobretudo, estabilidade política sobre a qual se erguia a garantia dos direitos. Em contraste com os tormentos anos do pós-guerra, arrasados por revoluções e hiperinflação, entende-se o suspiro nostálgico e lamentoso sobre um tempo dourado que não volta mais. Mas, não obstante toda a segurança material e política da época, havia, subjacente a ela, uma cacofonia de vozes discordantes, uma cisão entre individuo e sociedade junto a uma sensação difusa de acordo com a qual uma síntese conciliadora e harmônica seria impossível.
O livro “O Homem Sem Qualidades” de Robert Musil é uma longa reflexão sobre a condição fraturada e existencialmente desorientada do homem moderno que viveu a Belle Epoque e o fin-de-siecle ao mesmo tempo. O romance, cujo cenário é a Viena do começo do século XX, não tem um fio narrativo convencional, estruturado em arcos dramáticos e histórias com inicio, meio e fim; ele é, na verdade, uma meditação que se desenrola nos diálogos e pensamentos do protagonista Ulrich, um matemático de meia idade que decide ‘tirar férias da vida’. O estilo ensaístico da obra é indício da própria trajetória de Ulrich e da sua relação com a vida e a sociedade: não há nada com o quê ou com quem se fixar, nenhuma tradição a velar, nenhuma ideia a ser cumprida, exceto o ‘flutuar’ errático em diferentes contextos, com diferentes pessoas, atravessando as mais díspares concepções e extraindo delas análises, impressões, reflexões etc., sobre o significado da existência moderna. Em comum a todas elas está o problema de uma ‘unidade’ entre espírito e mundo que se torna inviável numa sociedade em que o sujeito, fragmentado em suas capacidades, é submetido a uma impotência na qual “A gente pode fazer o que quiser (…)que isso não tem a menor importância nesse emaranhado de forças”, reflete Ulrich. E o que seria esse ‘emaranhado de forças” , afinal?
Primeiro, após mais 100 anos de revolução industrial, o triunfo da técnica havia transformado radicalmente o trabalho. Este se desenvolveria numa divisão social tão minuciosa e complexa que a qualidade artesanal decrescia junto com o protagonismo humano na produção de bens. O saber e a habilidade de cada artesão cediam pouco a pouco aos sistemas impessoais de administração científica do trabalho, muito mais eficientes. Como resultado, imensas fábricas e redes de comércio se ergueram e olharam de cima pra baixo um homem cada vez mais diminuto. A humanidade, no abstrato, se tornara mais esclarecida e poderosa, enquanto o homem, no particular, mais ignorante e vulnerável em relação às forças titânicas do progresso. Musil argumenta no livro que o desenvolvimento dessas forças, concentradas no aperfeiçoamento do detalhe, acarreta a desordem do todo:
"Nestes cem anos, aprendemos conhecer muito melhor a nós mesmo, à natureza, e a todas as coisas, mas o resultado foi que tudo o que se ganha em ordem no detalhe, se perde no todo, de modo que temos sempre mais ordem e menos ordem"
Essa desordem no todo se traduz no aspecto antagônico da política e das ideias no geral, outra razão que reforça aquela impotência frente ao ‘emaranhado de forças’ aludido por Ulrich. O protagonista de “Homem Sem Qualidades’ percebe que já não há mais uma grande ideia sintetizadora, capaz de ordenar a vida numa unidade coerente e dotada de sentido, e sim, em vez disso, várias ‘grandes ideias’, uma se opondo a outra numa interminável discussão em meio a qual o homem se desorienta ainda mais. Ulrich reflete:
A era contemporânea foi presenteada com uma porção de grandes ideias, e, pra cada ideia, por especial gentileza do destino, recebeu também uma contraideia, de modo que individualismo e coletivismo, nacionalismo e internacionalismo, imperialismo e pacifismo, racionalismo e superstição convivem muito bem dentro dela, juntando-se a eles ainda os restos não consumidos de incontáveis outros contrários, de maior ou menor valor atual.
É uma era cuja característica principal é a fragmentação caótica do todo na medida em que cada parte individual, carregada de sua própria ‘grande ideia’, reivindica uma universalidade em detrimento da outra. Essas ideias antagônicas convivem bem contanto elas não acirrem os ânimos e não mobilizem as paixões das massas desenraizadas e livres da ordem tradicional. De outro modo, elas semeiam o terreno para o cultivo das revoluções e guerras vindouras.
A aristocracia até tenta resistir ao impulso dissolutivo desencadeado por esse ‘emaranhado de forças’. A autoridade da igreja, da família e da tradição se mantém, como sustenta Arno Mayer, porém cerceada e ameaçada; assim como as ‘grandes ideias’, tal autoridade aos poucos é reduzida a apenas mais uma dentre tantos outros ‘poderes’ concorrentes entre si: a autoridade da igreja se contrapõe a do estado, a da família a do individuo, a da tradição a da modernidade etc. Seria possível romper essas antinomias e reestabelecer a ordem do antigo regime? Nem mesmo o reacionário Conde Leindorf, em diálogo com Ulrich, acredita nessa façanha. Numa formulação categórica, o conde diz que ‘não existe retorno voluntário na história’:
“(…) aborrecia-se com Ulrich e tinha querido dizer que a burguesia desprezava o espírito universal da igreja católica, e agora sofria as consequências. Também seria aconselhável elogiar os tempos de centralismo absolutista, em que o mundo fora dirigido por pessoas responsáveis, segundo ponto de vistas uniformes. Mas, de repente, enquanto ainda procurava palavras, ocorrera-lhe que ficaria desagradavelmente surpreeendido se certa manhã tivesse de acordar sem seu banho quente e sem ferrovia, e em vez dos jornais da manhã apenas passasse o arauto imperial a cavalo pelas ruas. Portanto, o conde Leinsdorf pensou, “o que uma vez foi, nunca mais será da mesma maneira”, e ficou muito espantado ao pensar nisso. Pois, presumindo que na história não houvesse retorno voluntário, a humanidade parecia com um homem empurrado para diante por um impulso de peregrinar, que não pode voltar nem chegar, e isso era um estado muito singular.
Um indivíduo desenraizado e impelido a vagar por caminhos imbricados uns com outros, cujo ponto de chegada é apenas a articulação para uma outra travessia desconhecida - eis o homem sem qualidades, este viajante eterno, que também pode ser descrito como ‘sem memória’ pois já não se lembra da onde veio, e até dúvida se há uma origem última; por isso ele não pode retornar, nem mesmo se quisesse.
A aristocracia é fustigada a peregrinar e a se distanciar de suas raízes, porque a única maneira de conservar o seu poder relativo é por meio da dependência de um sistema que, em última instância, nega a existência dela. A renda da terra que irriga o bolso dos senhores é proveniente de uma intricada rede de comércio global, enredada por intermediários (the middle man) que crescem de importância e passam a eclipsar a grandeza decrescente dos barões e condes. Estes, assim como o conde Leindorf, não querem abrir mão da ferrovia, do banho quente, dos telégrafos: o progresso é irresistível, e quem não aderir a ele irá perecer no implacável jogo competitivo dos mercados e das nações. Portanto, mesmo que contraproducente no longo prazo, o fidalgo vê a sua sobrevivência atrelada ao vagão da modernidade. Ele se afilia ao estado-nação e ao comércio, o primeiro para proteger a sua propriedade, o segundo para financiar seu prestígio. Então, a causa de uma nação assertiva no plano internacional, capaz de assegurar terras e mercados, coincide com o seu interesse, que deixa de ser mesquinhamente provinciano para escalar até a dimensão superior do poder mundial: a weltpolitik. Não mais a família, não mais o feudo interiorano e as intrigas intestinais, mas a briga por um lugar ao sol no tabuleiro das grandes nações - o nobre pretende se realizar nele, porém acaba, isso sim, encontrando a sua própria ruína.
A belle époque e o fin-de-siecle são paradoxalmente contemporâneos: Zweig enfatiza a harmonia da primeira forma de contemporaneidade, enquanto Musil, apesar de também reconhecê-la, observa, com certo cinismo, que havia algo de dissonante e explosivo contido na segunda. O brilho ofuscante da belle époque atrai uma nobreza que, durante o seu translado, se perde, decaí e reflete pesarosamente: o meu mundo está se desintegrando, a minha bela vida está murchando e assim me torno mais uma partícula perdida neste turbilhão.
Frederic Jameson no clássico The Culture logic of late capitalism: ‘In modernism, as I will try to show later on, some residual zones of "nature" or "being" of the old, the older, the archaic, still subsist; culture can still do something to that nature and work at transforming that "referent." Postmodernism is what you have when the modernization process is complete and nature is gone for good.’
O livro Sleepwalkers do Chris Clark, que tenta reconstituir a crônica diplomática que conduziu até a primeira guerra, baseia-se extensivamente na biografia de nomes aristocráticos que controlavam os ministérios de assuntos externos.
Walter Benjamin define nesses termos a áurea:
Dois clássicos do século XIX dialogam com a questão das aflições da nobreza de uma modernidade fria e indiferente aos valores tradicionais: Oblomov, de Ivan Goncharov, e Ilusões Perdidas, de Balzac.
Ver “Tempestade de Aço”, de Ernest Junger
A capital vienense durante o final do século XIX e começo do XX foi o laboratório de muitas das ideias que, décadas depois, influenciaram a história do pensamento político, econômico, cultural etc., Ver os livros Black Viena e The Marginal Revolutionaries, ambos de autoria de Janek Wasserman.
Esse tema me chama muita atenção. Além da degradação da ideia de nobreza, há também a destruição dos 'ritos', uma das bases da própria nobreza.
Ainda pretendo ler mais sobre. De todas as obras citadas li apenas O Leopardo.
Ah, sobre o texto em si, acredito que é possível ser mais conciso. Há trechos 'vazios', que apenas repetem a ideia central. Mesmo assim, gostei da escrita.